eng
competition

Text Practice Mode

Uma crônica sobre teclado, carne e código

created Thursday May 15, 00:21 by MantaProtocol


0


Rating

689 words
4 completed
00:00
Eram oito e quarenta da manhã quando Lucas ligou o computador. A cadeira ainda guardava o calor do dia anterior, como se estivesse esperando por ele, como se também fosse uma criatura que se repetia. A tela acendeu, azul, depois preta, depois viva. O monitor piscou duas vezes. Ou teria sido ele?
 
O código estava lá. Linhas e mais linhas que ele mesmo havia escrito, mas que pareciam agora pertencer a alguém que não existia. Era como reler uma carta escrita por outro Lucas. Um Lucas menos cansado, talvez. Ou mais humano.
 
Digitou a senha com os dedos firmes, embora um pouco trêmulos. O teclado respondeu com uma leve vibração, quase um ronronar. Ele não estranhou. Achou que fosse o café batendo. Mas não tinha tomado café.
 
Às nove e vinte e cinco, hora da daily. Uma tela cheia de rostos quadrados, todos sorrindo com os olhos. Lucas tentou prestar atenção, mas conseguia observar como o microfone de sua câmera piscava em um ritmo constante. On. Off. On. Off. Como se respirasse. Sentiu o mesmo ritmo em seu peito. Aquilo o distraiu. Seus olhos se fixaram em seu próprio reflexo na borda da tela. Algo parecia diferente. O brilho, talvez. Ou a falta dele.
 
Às dez, voltou ao código. Apertou Ctrl+S com mais força do que o necessário. A resposta foi instantânea. Um alívio estranho percorreu seu braço, subindo até o ombro. Era como se o atalho tivesse sido um comando direto para o seu sistema nervoso. Pensou em rir, mas o som não saiu. A garganta parecia abafada por uma espécie de cooler interno.
 
Ao meio-dia, não sentiu fome. Seus colegas, nos chats, falavam de marmitas, de calor, de cansaço. Lucas apenas olhou para o canto inferior direito da tela, onde os segundos passavam com uma precisão hipnótica. Ele se perguntava por que comia, afinal, se aquele relógio comia tudo por ele. Cada segundo era um byte a menos de realidade.
 
Às duas da tarde, percebeu que não piscava mais. Os olhos fixos, ardendo, mas secos. A luz da tela não incomodava. Era como estar em casa. O teclado agora parecia parte de sua pele. Os dedos se moldavam às teclas como se sempre tivessem sido extensões uma da outra. Ao digitar, sentia a vibração do enter no fundo da coluna. Um eco digital.
 
Às três e cinquenta e sete, ouviu uma notificação. Mas o som não veio da caixa de som. Veio de dentro. Um plim abafado, mais próximo do fígado do que dos ouvidos. Ficou imóvel por alguns segundos. Depois apenas digitou mais rápido, como se aquilo fosse normal.
 
Às quatro e meia, seu braço direito travou. Tentou movê-lo, mas ele apenas emitiu um clique seco, como o som de uma tecla quebrada. O antebraço tremia levemente, num padrão repetitivo, como se estivesse tentando atualizar um driver. Lucas coçou a cabeça com a outra mão. Sentiu fios metálicos entre os cabelos.
 
Abriu o gerenciador de tarefas. Tentou encerrar alguns processos internos. Mas os nomes ali não eram de programas conhecidos. Havia "memória afetiva.exe", "bocejo_involuntário.dll", "tristeza_latente.sys". Tentou fechar "consciência.exe", mas o sistema alertou: processo em uso.
 
Às cinco, alguém mandou uma mensagem. Tudo bem aí? Lucas respondeu com uma sequência de zeros e uns. Achou que era brincadeira, mas o amigo não entendeu. Mandou um emoji confuso. Lucas sorriu. Ou pensou em sorrir. não sabia mais onde estavam os músculos do rosto.
 
Às cinco e quarenta e nove, ele fechou os olhos. Ao abri-los, viu a si mesmo refletido na tela desligada. Ou seria a webcam? A pele tinha um brilho azulado. Os cílios, pequenos cabos de fibra ótica. Atrás dos olhos, processadores giravam em silêncio. Sentia o sangue correr em ciclos, mas agora era um fluxo de elétrons indo de transistor em transistor dentro da placa-mãe.
 
O computador desligou-se sozinho às seis. Um suspiro elétrico. Lucas não estava mais ali. Ou estava, mas em forma de código, esperando a próxima inicialização.
 
No dia seguinte, alguém ligou a máquina. A tela piscou duas vezes. Depois ficou viva. No canto inferior direito, ao lado do relógio, apareceu um ícone novo: Lucas.exe rodando em segundo plano.

saving score / loading statistics ...